by Dra. Martha Oliveira, Bacharel em Biomedicina pela UFRGS, PhD pela The University of Queensland.
A COVID-19 é a segunda pandemia que enfrentamos no século XXI e chegou causando polêmica. Aparentemente, mais do que achar uma solução, o que as pessoas querem é achar um culpado. Bom, lamento informar, mas “o culpado” somos nós – TODOS nós. Prevenção é um conceito que não estamos conseguindo aprender, mesmo depois de testemunharmos, em 10 anos, uma pandemia de um vírus novo da gripe [1,2] e duas epidemias de outros novos coronavírus! [3-5]. Parece que a única lição aprendida foi o uso do álcool gel, pois pouco foi investido em preparação para a próxima pandemia.
Atualmente, a Organização Mundial da Saúde (OMS) cita 20 doenças na lista de epidemias e pandemias (infecciosas) no mundo [6]. Dessas, 16 são doenças virais e só uma foi erradicada, a Varíola (a lista contém 4 doenças bacterianas, mas infecções causadas por bactérias são virtualmente impossíveis de serem erradicadas). Interessantemente, as outras 15 viroses da lista têm como hospedeiros naturais animais. Mas por que esses vírus começaram a infectar humanos? Porque esses vírus são zoonóticos, isto é, são vírus capazes de infectar outros vertebrados além dos seres humanos (como o SARS-CoV-2, causador da COVID-19). Quase todas as zoonoses que afetam humanos se originam em hospedeiros mamíferos ou aviários e, como animais atuam como reservatório, erradicar zoonoses é impossível. As zoonoses virais mais conhecidas talvez sejam o HIV-1, um vírus originalmente de chimpanzés que se adaptou a seres humanos, e o vírus Ebola, que é transmitido por morcegos, primatas não-humanos e porcos-espinho. Há “apenas” 260 vírus humanos conhecidos. Estimativas mostram que existem mais de 1,6 milhões de vírus de mamíferos e aves que pertencem a famílias que também abrigam vírus humanos. Alguns patógenos possuem uma habilidade inata maior de evoluir e se espalhar para novos hospedeiros do que outros. Mas, levando em consideração esses números, podemos inferir que 99,9% de zoonoses com potencial para infectar humanos ainda não foram identificadas [6,7].
O aumento das “novas” infecções (infecções emergentes) em humanos está ligado principalmente ao estreitamento do contato entre vida selvagem e humanos, ocasionado por diversos fatores: a destruição de barreiras naturais; o desenvolvimento de estradas e cidades em proximidade com florestas e matas; a destruição massiva de ecossistemas para a atividade agropecuária; o desenvolvimento de santuários e turismo ecológico, para observação de animais em seu habitat natural; alterações nos ecossistemas, criadas pelas mudanças climáticas. Além disso, em grandes partes da África Central e da Ásia, animais selvagens permanecem como uma importante fonte de alimento e de renda para milhões de pessoas [8]. Quando somamos a crescente conectividade global a esse cenário, podemos entender por que essas doenças emergentes facilmente adquirem um caráter pandêmico. A rápida mobilidade na atualidade permite que doenças de outros locais cheguem até nós. Até meados do século passado, travessias intercontinentais não eram comuns para maioria das pessoas e demoravam semanas ou meses – ocasionando uma espécie de quarentena espontânea para os viajantes. Hoje podemos atravessar o globo em um dia, potencialmente carregando micro-organismos de um país para outro, ameaçando até mesmo populações mais isoladas – como tribos indígenas no Amazonas, onde já há um caso confirmado de infecção por SARS-CoV-2 e, pelo menos, outros 6 em suspeita, segundo o SESAI (até 03/04/2010) [9].
Uma vigilância constante da evolução de patógenos pode ajudar no controle e na descoberta de zoonoses. Por exemplo, a Vigilância e Sistema de Resposta Global de Influenza monitora a evolução do vírus Influenza em tempo hábil há mais de 50 anos, fazendo alertas para emergência de vírus Influenza com potencial pandêmico. Esse tipo de monitoramento frequente seria importante para patógenos como os coronavírus. Por exemplo, análises genéticas frequentes do MERS-CoV, causador da Síndrome Respiratória do Oriente Médio (MERS), têm ajudado a elucidar a dinâmica da transmissão viral entre camelos e pessoas. Assim, a expansão desse tipo de acompanhamento em “tempo real” de patógenos seria um investimento governamental proveitoso em preparação para epidemias, reduzindo o impacto na saúde pública e na economia [10].
Referências
1. WHO. Pandemic (H1N1) 2009. https://www.who.int/csr/disease/swineflu/en/. (Acesso em 05/04/2020).
2. WHO. Emergencies preparedness, response. Pandemic (H1N1) 2009 - update 112. https://www.who.int/csr/don/2010_08_06/en/ (Acesso em 05/04/2020).
3. WHO. Emergencies preparedness, response. Cumulative Number of Reported Probable Cases of SARS (2003). https://www.who.int/csr/sars/country/2003_07_11/en/ (Acesso em 05/04/2020).
4. WHO. International travel and health. SARS. https://www.who.int/ith/diseases/sars/en/ (Acesso em 05/04/2020).
5. WHO. Middle East respiratory syndrome coronavirus (MERS-CoV). https://www.who.int/emergencies/mers-cov/en/ (Acesso em 05/04/2020).
6. WHO. Emergencies. Pandemic, epidemic diseases. https://www.who.int/emergencies/diseases/en/. (Acesso em 05/04/2020)
7. Carroll, D., Watson. B. et al., Building a global atlas of zoonotic viruses. Bulletin of the World Health Organization 2018; 96:292-294. doi: http://dx.doi.org/10.2471/BLT.17.205005
8. Devaux CA, Mediannikov O, Medkour H, Raoult D. Infectious Disease Risk Across the Growing Human-Non Human Primate Interface: A Review of the Evidence. Front Public Health. 2019;7:305. Published 2019 Nov 5. doi:10.3389/fpubh.2019.00305
9. SESAI - Secretaria Especial de Saúde Indígena. Coronavírus: Monitoramento dos DSEIS. http://www.saudeindigena.net.br/coronavirus/. Acesso em 04 de abril de 2020.
10. Smiley Evans T, Shi Z, Boots M, et al. Synergistic China-US Ecological Research is Essential for Global Emerging Infectious Disease Preparedness. Ecohealth. 2020;17(1):160–173. doi:10.1007/s10393-020-01471-2
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